Rodrigo Zani
A dinastia Bolsonaro e a disputa pelo futuro da direita brasileira
A frase célebre de análises políticas — “o bom político é um mau parente” — nunca descreveu Jair Bolsonaro. O ex-presidente jamais se destacou pela habilidade administrativa ou legislativa, mas certamente demonstrou zelo incomum por sua família. Ao longo de sua trajetória, construiu uma verdadeira linhagem política: todos os filhos ocupam cargos eletivos ou orbitam diretamente o poder. No interior desse arranjo quase dinástico, a sucessão sempre foi tratada como assunto doméstico.
Ainda que Bolsonaro responda a investigações e processos — e embora os desdobramentos de 8 de janeiro e as tentativas de contestar o processo eleitoral continuem como alerta —, o fato é que o bolsonarismo segue vivo. Mesmo politicamente fragilizado, Bolsonaro conserva a centralidade simbólica sobre sua base. E é desse ponto que emerge a escolha do herdeiro político preferencial.
Entre todos os filhos, Flávio Bolsonaro sempre foi o mais próximo de uma figura institucional, com trânsito no Congresso e percepção de pragmatismo entre aliados. Sua formação política, entretanto, carrega marcas nítidas da influência ideológica do pensador da extrema-direita brasileira Olavo de Carvalho — cujas teses conspiratórias moldaram a militância e muitos quadros do movimento.
Mesmo assim, Flávio conseguia, até certo ponto, representar uma ponte entre a ala mais ideológica e o núcleo pragmático da direita. Não por acaso, chegou a ser cotado para liderança do governo Bolsonaro no Senado. A nomeação, contudo, não prosperou — em grande parte por causa das denúncias do caso das “rachadinhas”, que fragilizaram sua imagem e geraram tensão dentro e fora do governo.
Na recente movimentação para 2026, a estratégia da família revela com mais clareza do que nunca seus verdadeiros objetivos. Flávio, lançado como pré-candidato pelo pai, foi questionado já em suas primeiras entrevistas públicas se havia condições para desistir da disputa. Sua resposta — curta e direta — foi: “eu tenho um preço para isso; vou negociar.”
Quando indagado se esse “preço” envolveria a aprovação de uma anistia aos condenados pelos atos de 8 de janeiro — incluindo a possibilidade da libertação de Jair Bolsonaro — ele não negou. Ao contrário: ao ser questionado, disse: “pai livre nas urnas.”
Essa postura escancara que, para o núcleo duro do bolsonarismo, as prioridades não são as demandas nacionais — saúde, educação, ciência, tecnologia, segurança pública — mas a preservação da família, de sua liberdade e de seu protagonismo político. A negociação aberta de anistia como moeda de troca revela um projeto estratégico cujo centro não é ideológico: é personalista e patrimonialista.
A possível entrada de Flávio na disputa presidencial de 2026 — ventilada por aliados e tratada por analistas como movimento estratégico — produz um efeito imediato: a reorganização do campo da direita.
Setores do mercado e parte expressiva do centrão priorizavam um nome de maior apelo técnico e eleitoral, como Tarcísio de Freitas. Contudo, a força simbólica do bolsonarismo permanece incontestável. Uma candidatura de Flávio funciona como veto implícito a outros postulantes e redimensiona o tabuleiro da direita a partir dos limites impostos pela família.
Tal fenômeno ecoa modelos semi-imperiais de política patrimonialista, em que a disputa não se dá entre correntes ideológicas, mas entre herdeiros, preferidos e designados.
Apesar de ter musculatura dentro da direita, Flávio enfrenta enormes dificuldades de diálogo com eleitores moderados e resistências entre setores mais progressistas. A comparação com Luiz Inácio Lula da Silva, caso este venha a ser candidato ou cabo eleitoral dominante, tende a lhe ser desfavorável.
O que explica, então, a insistência no fortalecimento de sua figura? A resposta pode estar menos na Presidência e mais no tabuleiro legislativo.
Para o bolsonarismo, o Senado aparece como arena estratégica para 2026. Há uma clara intenção de montar uma bancada radicalizada, com o objetivo de confrontar o Supremo Tribunal Federal (STF), impulsionar narrativas de anistia a condenados — inclusive o ex-presidente — e tensionar instituições republicanas. Nesse contexto, a projeção nacional de Flávio fortalece o clã e amplia seu poder de barganha no centro: não importa se governar, mas negociar concessões políticas e garantir impunidade.
Alguns interpretam esse movimento como forma de manter a família Bolsonaro no jogo do poder, independentemente de vitória eleitoral. A história política brasileira deixa claro que projetos autoritários raramente se dissipam com a queda de um líder — eles mudam de forma, se adaptam, aliam-se a novos atores, e buscam novos protagonistas.
O Brasil já conheceu esse roteiro. O golpe de 1964 não nasceu em 1964 — suas raízes remontam a crises anteriores, quando setores civis e militares ensaiaram movimentos golpistas que só foram contidos por contingências históricas. Décadas depois, as mesmas articulações derrubaram um governo democraticamente eleito, sob o pretexto de ordem, moral e contenção de reformas.
A democracia é mais frágil do que parece — e mais resiliente do que seus algozes calculam. O episódio de 8 de janeiro, cuja articulação resultou na condenação definitiva de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, em processo transitado em julgado no STF, deixou de ser mera controvérsia narrativa para se tornar um marco jurídico e histórico de subversão institucional. A decisão da corte demonstra que não se tratou de um protesto isolado ou desordenado, mas de uma ação coordenada para atacar a ordem democrática. O autoritarismo contemporâneo, portanto, não depende apenas de tanques: opera por narrativas conspiratórias, mobilizações de massa, chantagens políticas e desgaste sistemático das instituições.
O bolsonarismo, como fenômeno político, não termina com a derrocada momentânea de Jair Bolsonaro. A transição dinástica — ainda que informal — em torno de Flávio é parte da tentativa de continuidade de um projeto de poder que tensionou a democracia nos últimos anos. Por isso, instituições, lideranças políticas e sociedade civil precisam agir com vigilância democrática, observando cada movimento desse núcleo que se comporta como detentor de um patrimônio político hereditário.
A defesa da democracia exige preparação, organização e clareza sobre os riscos colocados no horizonte. Se a candidatura de um Bolsonaro se confirmar em 2026, o país precisará estar politicamente fortalecido para impedir que retrocessos institucionais se repitam — e que impunidade e interesses privados se sobreponham aos interesses públicos.