Rodrigo Zani
Prisão de Bolsonaro: um sintoma de um País sem reformas — não um motivo para comemorações
As últimas décadas da história brasileira começaram sob o signo da esperança. No final dos anos 1980, após duas décadas de ditadura militar, o país assistiu ao florescimento de um sentimento coletivo raro: a convicção de que seria possível reconstruir a democracia. As mobilizações das Diretas Já — a maior campanha cívica de nossa história — reuniram milhões de brasileiros nas ruas clamando pelo direito básico de escolher seus governantes. A emenda Dante de Oliveira, embora derrotada no Congresso, uniu o país em torno de um ideal e deixou no ar um sopro de esperança que culminaria na eleição indireta de Tancredo Neves e, em seguida, na promulgação da Constituição de 1988, a nossa “Constituição Cidadã”.
O texto constitucional devolveu protagonismo ao Parlamento brasileiro, o que era compreensível depois de tantos anos de autoritarismo centralizador. Era natural que o Congresso fosse visto como “a casa do povo” e o antídoto institucional contra novos retrocessos. O problema é que a Constituição foi escrita com feições de um regime parlamentarista, mas o povo, por meio de plebiscito, escolheu o presidencialismo. O resultado foi um modelo híbrido, contraditório, que nos condenou a um presidencialismo de coalizão — hoje cada vez mais metamorfoseado em presidencialismo de cooptação.
O sistema, antes apenas disfuncional, tornou-se disfuncional e profundamente fisiológico. Hoje, o Parlamento opera quase exclusivamente na base da troca: tudo se negocia, nada se planeja, pouco se constrói. A governabilidade depende mais de arranjos oportunistas do que de projetos estratégicos. E isso corrói o desenvolvimento econômico, social e democrático do país.
Foi nesse ambiente enfermo que, na manhã do último sábado, o Brasil assistiu à prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo a Polícia Federal, ele teria violado a tornozeleira eletrônica e surgiram indícios de tentativa de fuga. Parte da população comemorou a prisão, motivada pelo acúmulo de erros e excessos cometidos durante seu governo; outra parte, sua base mais fiel e radicalizada, respondeu com vigílias religiosas, orações e manifestações de apoio. Tudo isso faz parte da democracia — manifestações distintas podem e devem coexistir.
O verdadeiro problema, no entanto, é estrutural. Desde a redemocratização, apenas um presidente eleito conseguiu concluir seus mandatos sem enfrentar um processo de impeachment, ordem de prisão ou condenação criminal: Fernando Henrique Cardoso. Apenas um. Todos os demais enfrentaram crises graves:
Fernando Collor, eleito em 1989, foi cassado, sofreu impeachment e acabou condenado anos depois.
Lula, eleito em 2002 e 2006, foi preso na Operação Lava Jato e só retornou à vida pública após cumprir pena e recuperar seus direitos políticos.
Dilma Rousseff, eleita em 2010 e 2014, sofreu impeachment.
Michel Temer, seu vice e sucessor, foi preso assim que deixou o cargo.
E agora Jair Bolsonaro, preso preventivamente, já condenado por tentativa de golpe de Estado e alvo de múltiplas ações judiciais.
É lamentável — e profundamente simbólico — que todos aqueles que em algum momento representaram a esperança do povo acabem envolvidos em crises institucionais, políticas ou criminais. Não é razoável concluir que o povo não sabe escolher seus presidentes. O problema é maior, mais profundo e mais incômodo: algo está estruturalmente errado com o sistema político, institucional e social brasileiro.
Sem reformas estruturantes, especialmente a reforma política e a reforma da educação, viveremos de crise em crise — sempre à espera apenas da próxima faísca. Nenhuma grande potência se desenvolveu sem investimento robusto em educação, ciência e tecnologia. O Brasil oferece um sistema educacional excludente, pouco integrado ao futuro, e trata sua comunidade científica com descaso. Perdemos cérebros, perdemos pesquisadores, perdemos uma geração que poderia estar no centro do desenvolvimento nacional.
Ao mesmo tempo, nosso sistema político continua vulnerável, caro, disfuncional e facilmente capturado por interesses de curto prazo. Uma reforma política que fortaleça a governabilidade, reduza distorções do sistema eleitoral e reequilibre os poderes é indispensável para a estabilidade democrática. Não se trata de remendar o que existe, mas de revisitar a arquitetura institucional como um todo — modernizá-la, torná-la coerente, funcional, republicana.
Por isso, a prisão de Bolsonaro não deve ser comemorada como vitória, tampouco tratada como perseguição. Deve ser encarada como um momento de reflexão nacional. Não se trata de julgar apenas um indivíduo, mas de compreender que há algo profundamente disfuncional no país quando praticamente todos os seus presidentes eleitos terminam seus ciclos políticos entre crises, processos e prisões.
Enquanto as reformas estruturais não entrarem no centro da pauta nacional, o Brasil continuará repetindo seu ciclo de frustrações. E não haverá prisão — de Bolsonaro ou de qualquer outro — que resolva o que é, essencialmente, um problema de alicerce.