Rodrigo Zani
Dia das Crianças: entre a celebração, o consumo e o dever de garantir um futuro digno

No último domingo comemoramos o Dia das Crianças, uma das datas mais queridas e simbólicas do calendário brasileiro. O 12 de outubro é um dia de alegria, de união familiar e, claro, de muito movimento no comércio. A data foi criada oficialmente em 1924, por meio de um decreto do presidente Arthur Bernardes, e se consolidou nos anos 1950, impulsionada por uma grande campanha publicitária de fabricantes de brinquedos. Com o tempo, uniu-se ao feriado de Nossa Senhora Aparecida, tornando-se um marco duplo de fé e celebração.
Hoje, o Dia das Crianças é também um grande motor da economia. Segundo estimativas da Confederação Nacional do Comércio (CNC), em 2025 a data deve movimentar R$ 9,96 bilhões apenas no comércio de bens. Um número expressivo, que demonstra o impacto positivo no varejo e a força do consumo infantil na engrenagem econômica nacional. É, sem dúvida, um dia de festa, de presentes e de reencontros familiares.
Mas, enquanto milhões de brasileiros comemoram, outras milhões de crianças vivem uma realidade muito diferente. Por trás das vitrines e das campanhas publicitárias, existe um país que ainda falha em garantir direitos fundamentais à sua infância.
De acordo com dados da Agência Brasil, mais de 2,3 milhões de crianças de até 3 anos não conseguem vaga em creches — o primeiro passo para o desenvolvimento e a inclusão social. E entre crianças e adolescentes de 4 a 17 anos, o UNICEF e o Cenpec estimam que 1,09 milhão estão fora da escola. Ou seja, mais de um milhão de jovens brasileiros estão privados do direito à educação, garantido por lei.
O cenário da fome também é alarmante. A Pnad Contínua do IBGE (2024) aponta que 17,4% das crianças e adolescentes de 0 a 17 anos vivem com insegurança alimentar moderada ou grave — em casas onde falta comida ou onde a alimentação é insuficiente em qualidade. Isso significa que, em pleno século XXI, milhões de meninos e meninas brasileiros convivem diariamente com a privação do alimento básico.
E quando olhamos para a violência, o quadro se agrava ainda mais. A pesquisa “Situação de Violência Contra Crianças no Ambiente Doméstico”, do ChildFund Brasil com apoio da LEGO Foundation, mostra que mais de 90% dos casos de violência infantil ocorrem dentro de casa — justamente onde elas deveriam estar seguras. Somente no primeiro semestre de 2022, foram 122.823 violações de direitos de crianças de 0 a 6 anos, uma média de 673 casos por dia. Entre 2019 e 2021, 770 crianças foram mortas vítimas de violência doméstica, e entre 2021 e 2023, o UNICEF registrou mais de 115 mil notificações de violência não letal contra crianças e adolescentes.
Esses números revelam uma tragédia silenciosa que não se resolve apenas com datas comemorativas ou campanhas emocionais. E há mais: entre 2015 e 2021, o Brasil registrou mais de 200 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, segundo o Ministério da Saúde. Apenas em 2024, mais de 11 mil denúncias de exploração sexual infantil foram feitas no país. Trata-se de uma ferida aberta, marcada pelo silêncio e pela impunidade.
No mundo do trabalho, a infância também segue violada. Dados do IBGE (2023) mostram que 1,6 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham no Brasil — sendo 586 mil em atividades consideradas perigosas ou prejudiciais à saúde. Mesmo com avanços, o número é inaceitável para um país que se pretende justo e moderno.
Outro problema difícil de mensurar, mas igualmente grave, é o aliciamento de crianças e adolescentes pelo crime organizado. Embora não existam dados oficiais consolidados, sabe-se que facções e milícias utilizam menores de idade em atividades ilícitas, explorando sua vulnerabilidade social e emocional. Essas crianças, muitas vezes, são vítimas de um Estado ausente, que falhou em garantir educação, segurança e oportunidades.
A desigualdade entre crianças pobres e ricas no Brasil é uma chaga que torna diferenças gritantes em oportunidades visíveis desde os primeiros anos de vida. Um estudo recente do Todos Pela Educação mostra que, em 2024, apenas 30,6% das crianças de famílias mais pobres de até 3 anos frequentam creches, enquanto 60% das crianças de famílias mais ricas têm esse acesso.
Esse abismo se manifesta não só em educação infantil, mas em toda a cadeia de oportunidades: crianças de famílias ricas tendem a ter acesso a escolas melhores, materiais, saúde preventiva, alimentação de qualidade, atividades extracurriculares, internet rápida, lazer seguro — enquanto as crianças pobres enfrentam obstáculos duplos: falta de infraestrutura, menor poder de compra, menos investimento público, desigualdade racial e regional que amplia tudo isso.
Esse fosso entre pobres e ricos não é apenas injustiça moral, mas barreira ao desenvolvimento coletivo do país. Impede que talentos surjam, que demandas sociais sejam resolvidas e que a desigualdade seja de fato reduzida de forma sustentável.
Diante desse retrato, é impossível não questionar: estamos, de fato, cuidando das nossas crianças? Ou apenas as lembramos no dia 12 de outubro, entre brinquedos e comerciais de TV? Depois que me tornei pai, essa realidade passou a me tocar ainda mais fundo. Ser pai é entender que uma criança é pura, confia no mundo e só tem amor a oferecer. Fazer mal a uma criança é a maior crueldade que pode existir. E é justamente por isso que precisamos transformar nossa indignação em ação.
Uma nação que deseja se projetar para o futuro precisa colocar suas crianças no centro das políticas públicas. Educação de qualidade, alimentação saudável, acesso à saúde, segurança, cultura, esporte e lazer não são favores do Estado — são direitos constitucionais.
Meu sonho é simples, mas urgente: que o filho do pobre tenha as mesmas oportunidades que o filho do rico. Que cada criança possa crescer, brincar, aprender e ser amada — independentemente de onde nasceu.
O Dia das Crianças deve continuar sendo um dia de festa. Mas também precisa ser, cada vez mais, um dia de compromisso e de consciência nacional. Porque um país que não protege suas crianças está condenado a repetir seus erros. E um país que investe nelas, com amor e políticas públicas, constrói não apenas o futuro — constrói humanidade.