Em segundo turno histórico, bolivianos vão às urnas neste domingo para eleger presidente

Os bolivianos irão às urnas neste domingo (19/10) para escolher o próximo presidente do país. O segundo turno, algo inédito na história da Bolívia, é disputado entre dois candidatos de direita e simboliza o encerramento de duas décadas de domínio da esquerda.
O senador Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão (PDC), e o ex-presidente Jorge Quiroga, da coalizão Libre — ambos opositores do atual governo — conseguiram canalizar o descontentamento popular com o Movimento ao Socialismo (MAS) e chegaram à etapa final da disputa.
A eleição ocorre em meio a uma das piores crises econômicas do país, com inflação anual acima de 23% e escassez de dólares, produtos essenciais e, principalmente, combustíveis, situação que se agravou nos últimos dias.
Há pessoas dormindo dentro de carros para tentar abastecer. “As filas são intermináveis. Aqui em La Paz duram horas e horas, e no interior há quem espere três ou quatro dias. Os caminhões que transportam produtos estão sem diesel, o que afeta diretamente o ciclo econômico”, relata Christina Stolte, diretora da Fundação Konrad Adenauer na Bolívia.
Em Santa Cruz, o cenário é igualmente grave. “Há dificuldades para ir ao trabalho, para levar os filhos à escola. É um desastre, porque muitos não conseguem gasolina nem enfrentando as filas. O diesel, que alimenta o transporte público e as máquinas agrícolas, também está em falta”, descreve a cientista política Vania Sandoval, professora da Universidade Privada de Santa Cruz.
A crise econômica se tornou o eixo central da campanha. Questões como os 12 milhões de hectares queimados em 2024, o combate à coca usada no narcotráfico, a crise institucional e a figura de Evo Morales ficaram em segundo plano diante da urgência financeira.
Jorge “Tuto” Quiroga, o candidato experiente
Os dois concorrentes à presidência são figuras conhecidas dos bolivianos. Jorge “Tuto” Quiroga, nascido em 1960, foi ministro da Economia no governo do pai de seu rival, Rodrigo Paz. Posteriormente, foi vice-presidente no segundo mandato de Hugo Banzer e chegou à presidência da Bolívia.
“Quiroga é um político experiente, que se define como de direita. Banzer, seu mentor político, foi ditador em 1971. Mais tarde, voltou à política, venceu as eleições e ‘Tuto’ era seu vice. Esse é um dado importante, porque há bolivianos que ainda se lembram da ditadura militar”, afirma Sandoval.
Formado em engenharia, Quiroga viveu vários anos nos Estados Unidos e tem proximidade com organismos internacionais. “Essa é uma das bandeiras de sua campanha: ele afirma ter acesso a instituições que podem ajudar a Bolívia a enfrentar a grave crise econômica”, explica Sandoval.
A especialista observa que ele é visto como um opositor ferrenho ao MAS e um tecnocrata de linha dura. Quiroga tem como vice o candidato Juan Pablo Velasco.
Rodrigo Paz, o político carismático
Rodrigo Paz é filho de Jaime Paz Zamora, presidente da Bolívia entre 1989 e 1993. Sua aparência e forma de falar o fazem ser comparado ao pai. No primeiro turno, surpreendeu ao superar as previsões e conquistar apoio popular em regiões isoladas.
“Rodrigo Paz é carismático e tem experiência em gestão pública. Trabalhou anos para essa candidatura. Em vez de grandes campanhas, fez um trabalho de base”, diz Sandoval, observando que o programa de governo dos dois é bastante semelhante.
“Enquanto Quiroga propõe mudanças profundas e diz ser necessária uma injeção de recursos do FMI, Paz, que também tem um programa liberal com seu slogan ‘Dinheirinho para todos’, afirma que a Bolívia não precisa de dinheiro externo e que vai resolver sem intervenção do FMI. Diz que, se não houver corrupção, há recursos suficientes para dinamizar a economia”, destaca Stolte.
Os desafios do futuro presidente
O resultado ainda é incerto. As pesquisas indicam vantagem para Quiroga, mas costumam ser pouco confiáveis. “Está de tirar o fôlego, qualquer coisa pode acontecer”, diz Sandoval.
Independentemente de quem assumir após 20 anos de domínio do MAS, os desafios são grandes. O primeiro é construir governabilidade, analisa Moira Zuazo, pesquisadora da Universidade Livre de Berlim.
“A grande questão é como formar alianças que devolvam credibilidade e abram espaço para gerar legitimidade no conjunto da população. Tenho a impressão de que esse desafio será maior se Quiroga vencer com sua aliança, pois sua força parlamentar é menor e sua campanha parece ter fechado portas”, avalia Zuazo.
Outro obstáculo é a crise econômica. “O mais difícil será cortar os subsídios aos combustíveis, uma decisão que o atual governo não tomou”, observa.
Há também a necessidade de restaurar o Estado de Direito e fortalecer as instituições. “É a única coisa que vai permitir ter tempo para fazer as reformas necessárias e facilitar a governabilidade; para isso, você precisa de legitimidade”, acrescenta a especialista, que ainda alerta para o avanço do crime organizado.
A sombra de Evo Morales
O ex-presidente Evo Morales, alvo de uma ordem de prisão por tráfico de menores, vive na região do Chapare, protegido por aliados. Mesmo impedido de concorrer, obteve destaque no primeiro turno ao pedir votos nulos, que somaram 19%, quase um milhão de votos.
Como o próximo presidente lidará com a figura que marcou a política boliviana por tantos anos será uma questão crucial. “O MAS é mais do que Evo Morales. Seu eleitorado está decepcionado com a crise econômica, mas ainda se identifica com a ideia de Estado plurinacional, com a Constituição e com os direitos dos setores populares e indígenas”, explica Zuazo.
“Se Quiroga vencer, vai enfrentar Morales diretamente. Está muito claro que ele o vê como inimigo”, afirma Stolte. “Paz não foi tão explícito, mas, se chegar à presidência, também terá que lidar com esse problema. Evo Morales é um problema na Bolívia.”