Líder de seita do Santo Daime, ‘Padrinho Paulo Roberto’ tem prisão pedida pelo MP por abuso sexual
Reprodução O Ministério Público do Rio (MPRJ) solicitou a prisão preventiva de Paulo Roberto Silva e Souza, de 76 anos, conhecido como Padrinho Paulo Roberto, líder e fundador da seita da igreja Santo Daime Céu do Mar, localizada em São Conrado, Zona Sul do Rio.
O pedido, feito no último dia 4, é resultado da denúncia de violação sexual mediante fraude e violência psicológica contra Jéssica Nascimento de Sousa, adepta da doutrina desde 2015. Além de Jéssica, o jornal O GLOBO localizou outras cinco mulheres que relataram situações semelhantes de abuso.
A defesa de Paulo Roberto nega as acusações no processo, que corre em sigilo.
Abuso de poder e 'cura espiritual'
A denúncia do MPRJ detalha que, entre abril de 2022 e julho de 2023, o líder religioso teria se aproveitado da sua posição espiritual e da admiração de Jéssica para consumar atos sexuais.
Promotores indicam que Paulo Roberto "exercia uma espécie de fascínio sobre as seguidoras, valendo-se de sua posição de liderança religiosa para se relacionar com elas".
Jéssica, que foi assistente pessoal do Padrinho em 2020, relata que ele a fazia acreditar que os atos sexuais eram parte de um "processo de cura espiritual". A primeira abordagem ocorreu em abril de 2022, sob o pretexto de uma "terapia bioenergética" para desbloquear traumas.
— Ele disse: "faço há muito tempo uma terapia que é chamada bioenergética, desde a minha época de psicólogo. Vou pedir para você não falar para ninguém, porque não atendo mais pacientes, mas vou fazer em você. Vou tocar em alguns pontos para liberar traumas. Você pode chorar, pode gritar, mas aqui você está segura. Vou dando o contorno das coisas" — detalha Jéssica.
A progressão dos atos e a manipulação
Jéssica conta que, inicialmente, recusou a abordagem, mas o líder da seita insistiu.
— Eu aceitei fazer... Ele botou uma cadeira de frente para a outra, sentou de frente para mim e mandou que eu fechasse os olhos. Ele ia começar a tocar a minha mão, e se eu sentisse alguma coisa, eu falaria. Mas eu não estava conseguindo sentir. Ele tocou na lateral do meu peito. Eu disse: "Não. Para. Já estou bem". Ele respondeu: "é importante agora a parte de você falar o que está sentindo". Eu falei: "Olha, não estou sabendo o que estou sentindo. Vou precisar de um tempo". Ele tentou me abraçar quando fui embora — relata.
As sessões, segundo a vítima, evoluíram para atos libidinosos e conjunção carnal, por vezes sob o efeito de "substâncias entorpecentes" que ele alegava serem auxiliares no "tratamento curativo".
Sempre que tentava interromper, o Padrinho a manipulava, dizendo que as práticas eram cruciais para a cura ou que ela estava sofrendo um "ataque espiritual".
— Uma vez que ele me pediu beijo. Depois, rolou. Ele me levou para uma sala, para o sofá (...) Ele era o padrinho, meu padrinho, e falava assim: "Eu te vejo como uma filha, como uma mulher". Não era uma relação amorosa, era uma relação que não tinha nem nome. Era uma coisa do tipo: "A gente está fazendo um negócio que as pessoas acham que é errado, mas a gente está aqui se curando" — continua Jéssica.
O relacionamento, que durou cerca de oito meses, era marcado pela insistência do líder.
— Durou muito tempo, de abril de 2022 até dezembro de 2022, mas não de forma constante, porque ele viaja muito. Foi por temporadas. Quando ele estava no Rio, eu tinha que trabalhar e ainda ficar lá (na igreja). Eu dizia "não". Ele insistia, e eu falava que estava com medo. Ele ria, e dizia que ele só tinha medo de Deus. Mas, na verdade, ele é um grande covarde — desabafa ela. — Ele dizia que eu tinha que ter força, que era uma missão, que eu tinha que seguir.
A versão da defesa e o sigilo
A defesa de Paulo Roberto alega que Jéssica "manteve um relacionamento amoroso e extraconjugal" e que, após a esposa dele descobrir a traição, ele optou por salvar o casamento. A partir da expulsão de Jéssica da Céu do Mar, ela teria iniciado as acusações.
O processo tramita em sigilo na 11ª Vara Criminal da Capital e aguarda a decisão da juíza Renata Travassos Medina de Macedo sobre o pedido de prisão preventiva.
Relatos de outras vítimas e alcance internacional
O GLOBO entrevistou outras cinco mulheres, incluindo Isabela Maria Augusto De Lima, Fernanda Lin e a americana Maria del Castilho, que relataram abusos em diferentes épocas, dentro e fora do Brasil. Paulo Roberto possui forte influência em ramificações da seita nos EUA, Canadá e México.
Maria del Castilho descreveu um episódio ocorrido em 2007, no Rio, quando o Padrinho a convidou para uma conversa particular e a levou para uma varanda escura.
"Em seu escritório, ele me levou até a varanda, onde estava bem escuro. Durante nossa conversa, perguntei quem ele era e qual era o papel de um padrinho. Ele disse que não poderia me explicar em palavras e que teria de me mostrar. Senti-me desconfortável com isso, mas não queria ter desconfianças sobre alguém em que todos claramente confiavam. Então, permiti que ele continuasse. Ele, então, me puxou para mais perto até que nossos corpos ficassem colados. Ele me segurou fortemente pela parte superior do corpo, me abraçando e esfregando minhas costas, com o rosto encostando no lado do meu rosto e pescoço", escreve ela.
A americana relata ter ficado "extremamente desconfortável" e que, ao expressar isso, ele se mostrou decepcionado.
— Ele se afastou. Eu me senti perturbada e virei de costas para ele, segurando no corrimão da varanda para tentar me equilibrar. Ele, então, começou a massagear minhas costas e meus ombros. Isso me deixou extremamente desconfortável, e eu disse isso a ele. Voltamos para dentro, para o escritório, e ele disse que eu não estava entendendo o que ele estava fazendo. Ele parecia decepcionado comigo. Eu disse que sentia muito, mas que estava tendo dificuldade em confiar nele e que me sentia realmente desconfortável. Ele disse que estava apenas tentando me enviar amor, que eu poderia levar para casa comigo. Queria que eu aprendesse a me amar.
Investigação e suspensão
A denúncia de Maria levou a uma investigação no Centro Eclético de Fluente Luz Universal Rita Gregório de Melo – América Norte (Ceflurgem-AN), que concluiu haver "a aparência de má conduta sexual" e inferiu um "comportamento abusivo". O relatório destacou o desequilíbrio de poder, afirmando que a vulnerabilidade da seguidora "nulifica até atividades sexuais consentidas".
Apesar de uma suspensão inicial em 2007, Paulo Roberto reassumiu a condução de cerimônias. Antes, ele enviou um e-mail a Maria pedindo desculpas:
"Quero expressar meu sincero arrependimento por qualquer coisa que eu possa ter dito ou feito que tenha lhe machucado, e peço seu perdão. Perdoe minha ignorância e minha falta de vigilância. Exausto, fui cegado por minha ansiedade e urgência em ajudá-la. Você iria embora no dia seguinte, e eu estava profundamente preocupado com você. Para mim, como Padrinho, ajudar alguém não é uma opção. É uma missão que devo cumprir com amor e verdade. Sinto muito profundamente qualquer mal-entendido que eu possa ter causado e desejo apenas trazer um encerramento saudável e completo a este incidente. Senti sua dor e confusão, e espero que este reconhecimento lhe traga algum conforto. Eu também tenho sofrido muito, vivendo grande tormento", diz trecho da carta.
A defesa, no entanto, argumenta que os relatos de Maria seriam inverídicos e que os "supostos fatos criminosos ocorridos há décadas" estariam "fulminada pela incidência da prescrição".
Relatos mais antigos
Outras mulheres relatam abusos que datam de décadas. Isabela Maria Augusto de Lima, que conheceu a igreja em 1984, aos 24 anos, conta que, após o ritual de entrada, o Padrinho a convidou para atendimentos individuais.
— Ele me convidou para fazer uma terapia, onde começou a passar muito a mão no meu corpo. Eu tinha 24 anos. Mas eu estava acostumada a fazer terapia psicológica. Desde os 14 anos eu tinha terapeuta, então eu disse: "Olha, não estou gostando dessa abordagem". E ele dizia: "É importante para você soltar as suas energias, até seus demônios" — conta ela, hoje com 64 anos.
Fernanda Vieira, por sua vez, relata um episódio de abuso quando era menor de 18 anos, na casa do líder, quando era amiga de uma de suas filhas.
— Eu morava num condomínio perto do Céu do Mar, bem perto. Eu tinha 17 anos na época e ele ligou dizendo que queria que eu fizesse um trabalho. Ele disse que percebeu que eu estava animada com computação e me chamou. Cheguei lá, ele disse para eu entrar, perguntou sobre o colégio. Do nada, ele disse que eram 16h30 e pediu para eu passar um remédio nele. Tudo já estava meio constrangedor, mas era o pai da minha amiga falando de saúde e pedindo para eu passar o remédio. Ao aplicar o medicamento, ele disse: "Passa esse remédio direito! Deita aí que eu vou te mostrar como passa!".
Fernanda conseguiu interromper o abuso:
— Ele começou a passar a mão, vi que ele estava perdendo o controle, e pensei que, se eu não desse um basta, eu ia dançar. Eu disse: "Para!". Ele saiu, foi ao banheiro. Eu fiquei em estado de choque, não conseguia nem me mover. Ele saiu do quarto.
Isabela e Fernanda prestaram depoimento no caso de Jéssica, que buscou a religião em 2015 em meio a uma crise aguda de depressão, buscando auxílio e amparo religioso.