PSDB perdeu a direita e cavou a própria cova com rachas e traições

Partido do Real e da modernização do Estado brasileiro, o PSDB por duas décadas protagonizou com o PT os rumos da política nacional, vangloriando-se de possuir os mais bem preparados quadros políticos e técnicos do país. Com o mesmo esmero, suas lideranças dedicavam-se nos bastidores a sucessivas traições e sabotagens. Denúncias de corrupção e o surgimento de Bolsonaro acentuaram a crise e rasgaram a superfície de polida competência do partido, que hoje depende de fusão ou federação com outras siglas para sobreviver.
Era uma manhã de março de 2016 quando o destino tocou a campainha do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Aécio Neves, então senador, recém-desembarcado em Congonhas, atravessava a cidade com uma comitiva de repórteres. Não vinha para conversar. Queria arrastar o governador Geraldo Alckmin até a avenida Paulista, onde fervilhava a maior manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff.
"Isso é uma armadilha", murmurou o governador, seco, a dois assessores. Sabia que, se não fosse, os jornais do dia seguinte o carimbariam como o responsável pelo racha tucano. Suspirou, entrou na van e partiu. No trajeto, os dois homens, que um dia representaram o futuro do país, viajaram lado a lado, calados, como estranhos no mesmo velório.
Na Paulista, antes do cheiro de fritura dos ambulantes, vieram as vaias. Cartazes pediam cadeia. Um manifestante gritou "corrupto" diretamente a Aécio. Para quem conhecia o ninho tucano por dentro, era o início do fim de um projeto que prometera civilizar a política nacional — e acabava linchado no meio da rua.
Alckmin via nas pedaladas fiscais atribuídas ao governo Dilma não um crime, mas uma farsa. Dizia aos próximos que, sob aquele microscópio ideológico, nenhum prefeito passaria sem arranhões. Para ele, o impeachment era juridicamente frágil e politicamente perigoso, um precedente que poderia ser usado contra qualquer governante.
A irritação do governador não era só jurídica. O PSDB começava a flertar com um terreno que jamais fora o seu: polarização sem freios, rua ensandecida, populismo do ódio. "Já não era um movimento que nos cabia bem", admite hoje Aécio Neves, em entrevista à Folha. "Era uma coisa esquisita, radicalizada."
Quem também enxergou o erro, tarde demais, foi Aloysio Nunes Ferreira, vice na chapa de Aécio em 2014. "Naquele processo de impeachment, estávamos misturados com gente da extrema direita. Quando surgiu um líder de extrema direita, o eleitorado foi embora."
Da queda de Fernando Collor (1992) à chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto (2019), o Brasil deslizou para a direita nos costumes, mas não gerou um líder conservador à altura do palco nacional. O PSDB ocupou esse vácuo como figurante de luxo. Colheu votos, mas perdeu a alma. Quando Bolsonaro enfim surgiu, o público voltou ao seu "galinheiro ideológico".
A travessia do impeachment à pandemia foi uma sangria lenta. O partido definhou em discurso, quadros e votos. Alckmin filiou-se ao PSB e virou vice de Lula. Fernando Henrique Cardoso e José Serra recolheram-se. Aloysio saltou do barco, assim como os governadores Eduardo Leite e Raquel Lyra. Sobrou Aécio, condômino solitário de uma legenda vazia.
O desastre estourou nas urnas: 59 deputados federais eleitos em 2002; 43 em 2006; 53 em 2010; 54 em 2014; 29 em 2018; míseros 13 em 2022. Testemunhei essa derrocada de perto, mais especificamente de 2010 a 2018, nas campanhas presidenciais de Serra em 2010 e de Alckmin em 2018. Entre essas duas datas, fui secretário de comunicação de Alckmin no governo do Estado de São Paulo.
Hoje, o PSDB vaga como um zumbi institucional: respira por aparelhos fornecidos pela cláusula de barreira e só se mantém de pé graças à esperança de uma fusão ou federação que lhe garanta tempo de TV e verba do fundo partidário.
A contradição de origem
O PSDB já foi o partido do Plano Real e dos quadros mais bem preparados da política brasileira. Durante duas décadas, encarnou o espírito do diálogo e do consenso. Entre 1994 e 2014, o Brasil viveu sob um duopólio imperfeito. Os tucanos sustentaram seu lado da equação com técnica, compostura institucional e ambição modernizante.
Esse foi o retrato traçado, com certa nostalgia contida, pelo vice-presidente da República. Fundador do PSDB, Alckmin disse à Folha que o partido foi "promotor de grandes avanços sociais e econômicos", defensor intransigente da democracia. Falava como quem olha para trás com gratidão. Sem ressentimento, sem deslealdade. Talvez apenas com uma ponta de melancolia.
Atrás da superfície polida da competência, o PSDB carregava, desde a origem, uma contradição estrutural. Nunca foi exatamente um partido. Era mais uma federação de caciques, amarrados por conveniências eleitorais e antipetismo comum. Uma social-democracia sem sindicatos. Um clube de notáveis que confundia excelência técnica com legitimidade popular. Seu maior trunfo, o rigor gerencial, foi também seu limite. Sobraram planilhas, mas faltou povo.
Uma social-democracia sem sindicatos. Um clube de notáveis que confundia excelência técnica com legitimidade popular. Seu maior trunfo, o rigor gerencial, foi também seu limite. Sobraram planilhas, mas faltou povo.
Em 2015, FHC parecia ter compreendido o impasse com a clareza dos que já não disputam o poder. Essa lucidez se manifestava nas sessões de pôquer que promovia em seu apartamento, ou no de João Rodarte, jornalista e parceiro de cartas, das quais eu participava.
As apostas eram modestas: quem vencia saía, no máximo, com R$ 200. FHC não blefava. Seu hobby era desmascarar os blefadores — como se aquele jogo lhe oferecesse um simulacro controlado da política real, onde tudo era engano, mas ao menos havia regras.
À volta da mesa, copos d’água e silêncios longos acompanhavam alguns dos cérebros mais afiados da vida intelectual brasileira — o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, o historiador Boris Fausto.
Em meio às rodadas, FHC deixava escapar, entre ironias e desabafos, seus diagnósticos sobre o partido que fundara. “A maternidade do PSDB encerrou suas atividades”, dizia, meio rindo, meio resignado. “Não nasce mais ninguém. São os mesmos desde 1994. Vão todos ficando velhos. O único que não envelhece aqui sou eu.”
Em outra conversa, o ex-presidente confessaria: “Se voltasse no tempo, teria me dedicado muito mais ao PSDB”. Soava como um pecado venial, mas ecoava como um epitáfio precoce de um projeto que envelheceu antes de aprender a se renovar.
A ironia era afiada: o sucesso do Plano Real destruiu qualquer senso de urgência pela construção partidária. Com FHC no Planalto e os tucanos distribuídos por governos estaduais e prefeituras, quem precisava de diretórios fortes, convenções vibrantes ou quadros novos? O poder embriagava. A gestão deslumbrava. Mas não deixava descendência.
2004 e 2008: A traição paulistana
A sequência de autossabotagens selou o destino tucano. Das punhaladas internas aos predadores externos, o PSDB construiu sua própria erosão com esmero.
Uma das primeiras emboscadas ocorreu em 2004, com a traição paulistana. Houve um telefonema que poderia ter mudado o rumo da política brasileira.
No apartamento do velejador Lars Grael, filiado ao então PFL, o aparelho tocou. Do outro lado, José Serra fazia um convite improvável: queria o medalhista olímpico como seu vice na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Gestor competente, com passagem pelo Ministério do Esporte no governo FHC, Lars era, para Serra, o tipo ideal de político: alguém que ainda não era político.
A base reagiu com instinto feroz. Tucanos e pefelistas, unificados como raramente se viu, lançaram o ultimato: “Se o vice não for Kassab, a candidatura não vai pra rua”. Serra, pragmático como sempre, cedeu. E Gilberto Kassab, então deputado federal pelo PFL, virou o vice e um dos mais fiéis parceiros do tucano.
Serra foi eleito prefeito naquela eleição de 2004. Quinze meses depois, em março de 2006, quebrou a promessa de cumprir o mandato e renunciou ao cargo para disputar o governo do Estado. Deixou a prefeitura nas mãos de Kassab, que mais tarde construiria o PSD.
Em 2008, o PSDB expôs à luz do dia sua primeira grande fissura. Serra, governador de São Paulo, jogou todas as fichas na reeleição de Kassab na prefeitura da capital, ignorando sem cerimônia a candidatura de seu correligionário Geraldo Alckmin. Kassab venceu. Alckmin nem chegou ao segundo turno. Mais que uma derrota eleitoral, foi uma humilhação moral para o PSDB.
A ironia histórica foi dessas que a política arquiva com gosto. Se Lars Grael tivesse sido vice de Serra em 2004, Kassab jamais teria herdado a Prefeitura de São Paulo. Sem essa vitrine, talvez não tivesse construído o partido que hoje comanda como uma orquestra regida por pragmatismo implacável: o PSD.
Marcio Aith