Supersalário de juiz equivale ao orçamento de cidades pobres

Em 2024, 11 juízes que atuam nos 50 municípios mais pobres do país receberam supersalários, com vencimentos mensais que ultrapassaram o teto constitucional do funcionalismo público. Alguns chegaram a receber até R$ 111 mil por mês. Em determinadas cidades, o valor recebido por um magistrado em um ano superou todo o orçamento destinado a áreas essenciais como saneamento, meio ambiente e agricultura.
Na comarca de Icatu (MA), por exemplo, a juíza Nivana Pereira Guimarães acumulou R$ 634 mil em um ano, chegando a R$ 107 mil em dezembro — mais de oito vezes o teto legal de R$ 44.008,52. Esse valor supera o orçamento da Secretaria de Meio Ambiente da cidade (R$ 424 mil) e também os recursos para saneamento (R$ 332 mil). Icatu está entre os 20 municípios mais pobres do Brasil, segundo o IBGE.
Em Alcântara (MA), o juiz Rodrigo Otávio Terças Santos recebeu R$ 585 mil em 2024, com salários mensais que também ultrapassaram o teto. O valor é maior que os orçamentos municipais para agricultura (R$ 519 mil) e habitação (R$ 151 mil). Terças afirmou, em nota, que os valores são referentes a férias indenizadas e que suas remunerações são legais, acumulando funções no tribunal além da magistratura local.
No Maranhão, nove juízes que atuam em cidades de baixo PIB per capita receberam acima do teto constitucional. O estado concentra 34 dos 50 municípios mais pobres do Brasil. No Amazonas, onde duas dessas cidades estão localizadas, também houve pagamento de supersalários. Em Santa Isabel do Rio Negro (AM), o juiz Manoel Átila Araripe Autran Nunes recebeu R$ 512 mil no ano, com salários mensais de até R$ 69 mil. O montante é quase cinco vezes maior que o orçamento local para políticas voltadas às mulheres (R$ 112 mil).
Dos valores pagos, R$ 637 mil foram acima do teto, segundo dados oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Um terço dessas remunerações veio de "penduricalhos" classificados como verbas indenizatórias, como auxílio-creche e ressarcimentos diversos. Em nota, a Associação dos Magistrados do Maranhão defendeu a legalidade dessas verbas, autorizadas pelo CNJ.
Especialistas alertam para os efeitos desses supersalários no desequilíbrio orçamentário e na redução dos investimentos em políticas públicas. Renata Vilhena, presidente do Instituto República.org, afirma que os recursos poderiam ser redirecionados para áreas essenciais como saúde e educação. Segundo estimativas do Movimento Pessoas à Frente, os R$ 11,1 bilhões gastos com supersalários em 2023 poderiam beneficiar 1,36 milhão de famílias com o Bolsa Família por um ano ou viabilizar a construção de 4.582 unidades de saúde.
O economista Nelson Marconi, da FGV, reconhece que magistrados devem receber bons salários devido à complexidade da função e a necessidade de deslocamento para regiões remotas. No entanto, ele critica a falta de lógica na classificação de todos os pagamentos como indenizatórios. "Não há justificativa para tamanha disparidade", diz.
A diferença entre os salários da elite do funcionalismo e a renda média da população também prejudica a confiança no serviço público. Em Bequimão (MA), os trabalhadores formais ganham, em média, 1,7 salário mínimo, enquanto a juíza Flor de Lys Ferreira Amaral recebeu até R$ 84 mil em um mês, totalizando três vezes acima do teto em 2024.
Tadeu Barros, do Centro de Liderança Pública, ressalta que a importância da função não pode justificar valores que comprometem a responsabilidade fiscal. "Os valores recebidos por essa pequena parcela são absurdos diante da realidade nacional", conclui.