Angelo Cavalcante

Homem com H

Reprodução da Internet
Homem com H reprodução

Acabei de assistir ao maravilhoso e disruptivo "Homem com H", produção brilhantemente dirigida pelo jovem cineasta brasileiro Esmir Filho.

Está disponível na plataforma Netflix e vale a pena assistir.

Em breve síntese, o filme é mesmo uma espécie de cinebiografia de Ney Matogrosso e que, panoramicamente, conta desde a sua infância até ao seu sênior e gracioso momento octogenário.

Digo das razões da importância desse imenso filme, aliás, inequivocamente, a produção cinematográfica brasileira, como bem sabemos, se consolida definitivamente dentre as principais do mundo. E os motivos dessa pompa e dessa gala global são mesmo diversos...

...passa, por exemplo, pela candente originalidade da produção de roteiros muito bem definidos, o que envolve uma extraordinária capacidade de situar os temas abordados de maneira inteligente e adequada no espaço-tempo; junte-se a isso a performance e os níveis de realismo que nossos atores incorporam e; até ao próprio instante político do país, onde a cultura, a produção artística e sua correlata expressão se apresentam e se afirmam como política de Estado no afã de afirmar identidades, valores e projetos nacionais. Ao fim, é muito bom estar sob um governo que reconhece e, de fato, valoriza a cultura como algo importante.

Bom...

A obra de Esmir Filho retrata um Ney ainda infantil, muito criança e sob os mandos e gritos de um pai severo e autoritário.

O pai de Ney, militar de formação, trazia, sem qualquer filtro ou mediação, as rudezas do mundo militar para o ambiente familiar; o homem transplantou a mesma lógica imperativa, rigorosa e disciplinadora dos quartéis às intimidades e sutilezas da vida familiar.

Evidentemente isso não podia dar certo; de outro modo, essa será uma experiência decisiva às próprias escolhas do Artista.

A fase seguinte revela o efetivo início, a introdução do cantor no mundo da arte; o começo da icônica banda Secos & Molhados, e que, em si, fora uma revolução para os padrões artísticos e culturais da época.

Uma integral renovação e saída do juízo inquieto, provocador e transformador de Ney.

Não é exagero... É comum, mesmo para profissionais experimentados na análise artística, dizer que o Secos & Molhados foi revolucionário. Alguém certa vez escreveu que: "...se uma nave de alienígenas marcianos descesse, pousasse na Praça dos Três Poderes, na Capital Federal, isso causaria menos impacto do que a explosão artística e cultural que foi o Secos & Molhados".

E reparem bem... Estamos tratando do comecinho dos anos de 1970, onde a ditadura brasileira vivia seu clímax, seu topos, seu cimo em se tratando de um nacionalismo estúpido, exacerbado, tosco e que, em uma ponta, se realizava na geração do maior endividamento público da história econômica brasileira — o que, por sinal, gera efeitos perversos ainda para os dias de hoje — e, por outro lado, operava no imenso açougue de carne e vísceras humanas que todo o país vivia sob o comando de um assassino generalíssimo de nome Emílio Garrastazu Médici.

A arte de Ney, como se diz para os dias de hoje, "furou essa bolha"!

Envergonhou o poder, constrangeu a caserna, destratou suas regras, vigílias e imposições.

É cômico quando Ney se apresenta no Recife, a capital dos pernambucanos, e censores nonsense invadem seu camarim e o interpelam sobre: "quantos requebros o senhor dá no palco?"

Me digam... Como se responde a esse tipo de questão? Ney, sempre maravilhoso, sorriu!

O que fica é que nossa ditadura, além de assassina, corrupta e notavelmente tributária do próprio subdesenvolvimento nacional, é sobremaneira burra, miseravelmente infame e destacadamente idiotizada.

Em seguida, vem a ruptura com a banda, seus múltiplos casos amorosos até o drama de uma relação turbulenta e muito instável com o imprevisível Cazuza.

O filme irá mostrar, em ligeiras pinceladas, o que foi a epidemia de AIDS e que balançou os anos de 1980 e 1990. Pois sim... Quem foi adolescente e jovem nesses dramáticos anos irá entender muito bem o que essa doença representou.

Vale ressaltar ainda a pitoresca e curiosa relação artística de Ney com a natureza, e como essa mesma natureza se converte em infinita fonte de inspiração e de criação para o Artista. Aliás, Ney é um cerradeiro, filho das muitas, múltiplas e diversas savanas brasileiras.

Vale a pena assistir...

Por fim, a contraditória e turbulenta relação entre Ney e seu pai é, por fim, traduzida, refeita e ressignificada na parte derradeira do filme; revelando ternura, respeito e mesmo amor.

Que mais pode ser dito sobre essa obra?

Ney não foi só uma vanguarda; sintetizá-lo única e exclusivamente sob essa perspectiva seria pouco e mesmo injusto... Com sua ousadia, sua coerência e fidelidade às suas crenças e verdades, Ney Matogrosso se apresentou e se afirmou como a pessoa certa, no momento e no instante certos, para gritar, requebrar, ousar e se levantar em favor da arte plena, das liberdades individuais e de um país que, mesmo aprisionado, acorrentado pelos cravos, tramelas e grilhões de uma ditadura, consiga se ver, se enxergar, se reconhecer e se encontrar no infinito criador da cultura nacional.

É isso... Ney foi e segue sendo um dos mais modernos construtores da cultura brasileira.

Evoé!!!

Angelo Cavalcante – Economista, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Itumbiara.



LEIA TAMBÉM

Buscar

Alterar Local

Anuncie Aqui

Escolha abaixo onde deseja anunciar.

Efetue o Login

Recuperar Senha

Baixe o Nosso Aplicativo!

Tenha todas as novidades na palma da sua mão.