Quase 2,1 milhões de pessoas vivem sob risco de despejo no Brasil; 425 mil são crianças, diz pesquisa

Um balanço dos cinco anos da Campanha Despejo Zero revela que cerca de 2,1 milhões de pessoas, ou 437 mil famílias, estão hoje sob ameaça de remoção forçada no país. O levantamento reúne 3.078 casos de conflitos por terra e moradia, que atingem sobretudo pessoas negras (quase 1,4 milhão) e mulheres (mais de 1,3 milhão). Entre os grupos vulneráveis, também estão 415 mil crianças e 327 mil idosos.
Desde 2020, os conflitos resultaram em 62.381 famílias efetivamente despejadas e outras 107.356 com ordens suspensas. O estado mais afetado é São Paulo, com quase 160 mil famílias ameaçadas e 20 mil despejadas. Pernambuco e Amazonas vêm em seguida, cada um com cerca de 40 mil famílias sob risco.
A principal justificativa apresentada é a reintegração de posse, que envolve 201 mil famílias ameaçadas e 47 mil removidas. Outras motivações recorrentes são obras públicas, áreas de risco e zonas de proteção ambiental, cada uma impactando em torno de 35 mil famílias. O relatório ainda aponta que cerca de 3 mil famílias foram ameaçadas por ação do crime organizado.
Quanto aos responsáveis, o poder público esteve à frente do despejo de 27 mil famílias e da ameaça a outras 170 mil, enquanto agentes privados removeram 21 mil domicílios e pressionaram 124 mil famílias.
A Campanha sustenta que esses números não representam casos isolados, mas compõem uma crise habitacional sem precedentes. Além dos despejos, o país contabiliza 6,2 milhões de domicílios em déficit habitacional e 26,5 milhões de moradias inadequadas. Pessoas em situação de rua ou desabrigadas por desastres sequer entram nessa conta.
O recorte mostra também o caráter desigual do problema: 66% dos atingidos são negros, 62% mulheres e 75% de baixa renda. A maioria vive em áreas urbanas (87%), e a concentração do déficit habitacional é maior entre famílias pobres das regiões Norte e Nordeste, que respondem por mais da metade do total.
Outro ponto de destaque é a ofensiva legislativa da chamada Frente Invasão Zero. Foram identificados 108 projetos de lei em assembleias estaduais e câmaras municipais que buscam restringir direitos, criminalizar movimentos sociais e facilitar despejos. Algumas dessas propostas já aprovadas — em alguns casos, barradas depois por inconstitucionalidade — preveem penas mais duras para ocupações, reintegrações conduzidas pela Polícia Militar sem ordem judicial, multas de até R$ 50 mil e até a proibição de acesso a programas sociais ou concursos públicos para famílias que ocupem imóveis.
O relatório ainda critica a lentidão do governo federal e do Judiciário na implementação de mecanismos de mediação de conflitos. Em 2022, o STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu despejos durante a pandemia e, ao encerrar a medida, instituiu um regime de transição, que determinava a criação de comissões de soluções fundiárias nos tribunais e garantia audiências, inspeções e alternativas de moradia antes das remoções. Hoje existem 37 comissões em funcionamento, mas a Campanha afirma que muitas decisões ainda ignoram a resolução do CNJ que regulamenta o processo.
"Terra e moradia são pilares fundamentais de uma vida digna; são porta de entrada para outros direitos como saúde e educação", diz Raquel Ludermir, gerente de Incidência em Políticas Públicas da Habitat para a Humanidade Brasil.
"Trata-se de uma crise habitacional sem precedentes, que requer uma atuação urgente do Estado. Afinal, sem terra e moradia, não há soberania."
Lançada em 2020, a Campanha Despejo Zero reúne mais de 175 organizações, movimentos sociais, defensorias públicas e associações de magistrados. Foi decisiva para embasar a decisão do STF que suspendeu despejos na pandemia e agora pressiona o governo federal pela criação de uma política nacional de mediação de conflitos fundiários.