Brasil vê avanço silencioso de pilhas de resíduos tóxicos da mineração

A confeiteira Lexandra Machado jamais imaginou que presenciaria uma cena tão assustadora ao sair no quintal de casa naquela manhã de 7 de dezembro de 2024. A poucos quilômetros dali, uma imensa estrutura de mineração – uma pilha de rejeitos com 80 metros de altura – havia se rompido, espalhando resíduos sobre o povoado de Casquilho de Cima, em Conceição do Pará (MG).
“Fiquei tão atordoada, que comecei a gritar. Logo me lembrei de Brumadinho. Após uns 40 minutos, os funcionários da empresa passaram de carro, dizendo que era para sairmos de casa”, relembra Lexandra.
O deslizamento, provocado por uma estrutura que deveria ser mais segura que as barragens convencionais, expôs uma realidade pouco discutida: o uso crescente e ainda pouco regulamentado das pilhas de rejeitos na mineração brasileira. Apesar de serem vistas como alternativas mais seguras após a proibição das barragens a montante, as pilhas ainda não possuem normas técnicas federais claras nem fiscalização específica.
Enquanto os moradores permanecem desalojados quatro meses depois do acidente, especialistas alertam para os riscos. “A pilha rompeu em Conceição do Pará porque a base não foi preparada adequadamente para aguentar o peso”, afirma o engenheiro Júlio Grillo, ex-superintendente do Ibama em Minas Gerais. Ele explica que, embora essas pilhas utilizem rejeitos secos e apresentem potencial destrutivo menor que as barragens com lama, a falta de controle técnico as torna vulneráveis.
Nos últimos anos, com o fim das barragens a montante, a disposição de resíduos sólidos cresceu entre as grandes mineradoras. Dados da Vale mostram que atualmente 70% de seus rejeitos são armazenados a seco, em pilhas — número bem acima dos 40% registrados em 2014. Já a Samarco, envolvida no desastre de Mariana, empilha 80% dos rejeitos desde 2020.
Na prática, essas pilhas se assemelham a enormes montes de detritos, erguidos com restos do processamento do minério. Muitas vezes, superam em altura monumentos como o Cristo Redentor, que tem 35 metros — o monte em Conceição do Pará, por exemplo, já alcançava o dobro disso, e cobria uma área do tamanho do estádio do Maracanã.
A Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável por monitorar essas estruturas, admite que não possui equipe dedicada nem calendário específico para fiscalizar pilhas de rejeito. As vistorias ocorrem apenas como parte de ações rotineiras. Também não há um banco de dados público com informações estruturais dessas pilhas, ao contrário do que ocorre com as barragens.
O procurador federal Carlos Bruno Ferreira vê nas pilhas uma brecha regulatória. “Quando não há exigências legais, o minerador acaba não investindo em equipamentos de monitoramento, nem em pessoal técnico. Isso torna mais fácil, barato — e perigoso — descartar rejeitos dessa forma”, diz.
Hoje, o Brasil possui mais de 3 mil pilhas registradas — entre rejeitos, estéril e mistas. Destas, 232 armazenam exclusivamente rejeitos. A mineração de ferro e de ouro concentra os maiores volumes e os resíduos mais tóxicos, como arsênio e cianeto.
Desde 2018, foram ao menos quatro incidentes envolvendo deslizamentos de pilhas. Além de Conceição do Pará, houve episódios em Godofredo Viana (MA), Santa Bárbara (MG) e novamente em Godofredo Viana, em 2023. Em alguns casos, comunidades ficaram isoladas por dias. Em Santa Bárbara, a erosão foi atribuída a chuvas intensas — fator que, segundo especialistas, tende a agravar os riscos diante das mudanças climáticas.
“O empilhamento a seco é uma técnica ainda mal compreendida. As pilhas estão sendo projetadas com dados defasados, sem considerar o aumento da intensidade das chuvas nos últimos anos”, alerta Euler Cruz, presidente do Fórum Permanente São Francisco.
Para o engenheiro Júlio Grillo, a ameaça é real: “Talvez essas estruturas não causem tragédias como a de Brumadinho, mas, diante das chuvas extremas, elas podem ceder mais facilmente”.
Diante desse cenário, tramitam no Congresso projetos que visam regulamentar a segurança dessas pilhas, exigindo monitoramento, limite de altura, e transparência nos dados técnicos. Um deles, apresentado pela deputada Duda Salabert (PDT-MG), segue parado desde novembro de 2024, aguardando relator.
Enquanto isso, moradores como Lexandra seguem esperando por respostas — e por segurança. "Ficamos com medo até da chuva agora", resume.