Enfrentar desigualdade seria enorme avanço contra crise climática, diz cientista

A climatologista alemã Friederike Otto é uma das pioneiras nos chamados estudos rápidos de atribuição, metodologia que combina dados meteorológicos e modelagem computacional para medir como as mudanças climáticas afetam a frequência e a intensidade de eventos extremos.
Há pouco mais de uma década, Otto cofundou o World Weather Attribution (WWA), centro de pesquisa colaborativo que reúne cientistas de diversos países. O grupo acaba de publicar seu centésimo estudo. Entre eles, destaca-se uma análise do impacto do aquecimento global nas chuvas catastróficas que atingiram o Rio Grande do Sul em 2023.
Recentemente, Otto lançou o livro Climate Injustice: Why We Need to Fight Global Inequality to Combat Climate Change (Injustiça Climática: Por que Precisamos Combater a Desigualdade Global para Enfrentar as Mudanças Climáticas), ainda inédito no Brasil. A obra examina, a partir de oito eventos extremos — de ondas de calor na América do Norte a enchentes no Paquistão — como as mudanças climáticas são, na verdade, sintoma das desigualdades estruturais.
“Em cada estudo, ficava evidente que os mais marginalizados são os que pagam o preço mais alto pelos eventos extremos”, afirmou Otto em entrevista à Folha de S.Paulo.
Ela chama atenção para o fato de que as mulheres são particularmente afetadas, já que costumam assumir o cuidado dos mais vulneráveis, trabalham em condições mais precárias e, muitas vezes, utilizam os poucos recursos da reconstrução para proteger suas famílias e comunidades.
Ao refletir sobre o que a ciência deveria priorizar hoje, Otto enfatiza a importância da interdisciplinaridade, criticando a estrutura tradicional do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Apesar de o órgão ter elaborado um relatório especial sobre cidades unindo ciências físicas e sociais, manteve sua lógica compartimentalizada no sétimo ciclo de avaliação (AR7).
“O maior obstáculo para a ação climática é a manutenção do status quo. Discutimos mudanças pontuais, mas raramente questionamos se esse é mesmo o melhor modelo de sociedade. Falta imaginarmos o mundo no qual gostaríamos de viver. Isso explica por que as transformações avançam tão devagar.”
O que revelaram os estudos do WWA?
Ao longo dos últimos anos, o grupo conseguiu demonstrar que ondas de calor se tornaram mais prováveis e intensas devido às mudanças climáticas. Também identificaram a influência do aquecimento global em outros eventos extremos, como enchentes e chuvas intensas.
Contudo, Otto ressalta que nem tudo pode ser atribuído à crise climática. Fenômenos naturais como o El Niño também desempenham um papel. O que transforma um evento climático em desastre, ela afirma, são fatores como a vulnerabilidade social, a falta de preparo e a exposição das comunidades.
Como uma cientista física chegou à conclusão de que colonialismo, sexismo e racismo estão na raiz da crise climática?
Otto conta que sua compreensão amadureceu com a prática. Em cada novo estudo, notava que os mais pobres, racializados e marginalizados eram sempre os mais atingidos. Isso a levou a concluir que, sem enfrentar diretamente as estruturas desiguais herdadas do colonialismo, a desigualdade de gênero e o racismo sistêmico, não será possível conter a crise climática.
“O filme Não Olhe para Cima é um exemplo perigoso. Ele representa a mudança climática como um asteroide vindo de fora. Mas o problema é interno: nasce nas estruturas de poder que moldam a nossa sociedade.”
Para Otto, a ausência de uma única solução tecnológica não deve gerar paralisia, mas sim reforçar a ideia de que todos podem agir em algum nível para promover mudanças.
O que significa "pensar como uma mulher" para lidar com a crise climática?
Otto defende uma mudança de mentalidade no planejamento de políticas e sistemas de alerta, tomando como referência os cuidados tradicionalmente atribuídos às mulheres.
“Na Coreia do Sul, em um recente incêndio florestal, os principais mortos foram idosos que não conseguiram reagir a tempo. Se o sistema tivesse sido projetado pensando nas pessoas com mais dificuldades de locomoção, teria protegido todos.”
Ela reconhece que nem todas as mulheres pensam ou agem assim, mas afirma que há um padrão observado globalmente: mulheres tendem a agir com maior foco na coletividade, no cuidado e na resiliência familiar — enquanto o mundo ainda é estruturado para e por homens brancos plenamente capacitados.
Como a desigualdade de gênero se manifesta em eventos extremos?
Segundo Otto, as mulheres estão na linha de frente dos impactos climáticos. São elas que cuidam dos filhos, dos doentes, buscam água, garantem alimentação, geralmente em contextos de maior precariedade. Em sociedades mais desiguais, elas têm menos acesso à educação, o que dificulta ainda mais o recebimento de alertas e informações.
Além disso, estudos mostram que, em contextos de reconstrução, quando os recursos são direcionados às mulheres, há um investimento maior na resiliência familiar, algo que nem sempre ocorre quando o dinheiro fica nas mãos dos homens.
Por que a adaptação climática ainda está longe de ser realidade?
Otto explica que, quando a Convenção do Clima foi criada, os impactos ainda não eram tão evidentes. Por isso, a maior parte dos recursos foi destinada à mitigação, isto é, à redução de emissões.
Hoje, no entanto, está claro que as mudanças climáticas já estão em curso, e a adaptação — preparar a sociedade para lidar com os efeitos — precisa ser urgentemente priorizada. O problema é que aqueles que mais sofrem com os impactos são justamente os grupos mais negligenciados pelas políticas públicas e pela opinião pública.
O que deve ser feito diante de tragédias como a do Rio Grande do Sul?
Otto é direta: sistemas de alerta precoce são a prioridade número um.
“Quando há alertas eficazes — mensagens de texto, comunicados de rádios locais, agentes comunitários batendo de porta em porta — as mortes diminuem consideravelmente.”
Ela cita o caso das enchentes na Europa, que causaram muitos danos materiais, mas poucas mortes, graças aos investimentos em sistemas de alerta após episódios anteriores.
Outro ponto crucial, segundo Otto, é repensar o modelo de urbanização. A presença excessiva de concreto e asfalto impede o escoamento da água e agrava os impactos das chuvas. Reconstruir áreas afetadas exatamente como eram é um erro. É preciso criar zonas de inundação planejadas para que os rios possam se expandir com segurança.
E o papel da ciência hoje?
Otto defende que os cientistas rompam as barreiras disciplinares. A crise climática exige abordagens integradas. Não basta que cientistas sociais falem de adaptação e físicos tratem apenas de impacto.
“Precisamos cruzar os saberes, integrar perspectivas, sair dos nossos silos. E, acima de tudo, precisamos falar com clareza, oferecer evidências e dialogar com a sociedade.”