Extrema direita é ultraidentitária, diz autor de livro sobre identitarismo

No livro O Que É Identitarismo?, lançado pela Boitempo em 2023, o psicanalista Douglas Barros mergulha em um dos debates mais quentes e polêmicos do cenário político atual: o identitarismo. Para ele, essa não é apenas uma escolha pessoal ou ideológica — é uma imposição do Estado neoliberal.
Barros propõe uma leitura crítica e original: o identitarismo seria uma estratégia de gestão social. Segundo ele, políticas públicas voltadas para minorias, no contexto do capitalismo pós-fordista, servem menos para promover justiça e mais para administrar tensões sociais e evitar que essas se transformem em conflitos que ameacem a ordem neoliberal.
O problema, argumenta o autor, é que essas políticas acabam cristalizando identidades como categorias fixas. Isso não elimina os conflitos — apenas os redireciona. Com isso, abre-se espaço para o ressentimento, terreno fértil para líderes autoritários como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Viktor Orbán, que mobilizam um discurso de que minorias estariam “furando a fila” dos direitos e privilégios sociais.
Barros aponta que, apesar de se dizerem contra o identitarismo, esses líderes de extrema direita são, na verdade, profundamente identitários. “Os valores que eles chamam de universais só valem para um grupo muito específico: homens brancos, patriarcais, heteronormativos”, afirma. “O outro é sempre retratado como uma ameaça — como um espelho indesejado de quem eles mesmos são.”
A ilusão de escolha e o papel do Estado
O psicanalista argumenta que o identitarismo existe, sim — mas não como algo que as pessoas simplesmente escolhem. Ele surge como uma resposta impessoal do Estado neoliberal à necessidade de controlar e organizar as tensões sociais. Ao delimitar identidades, o sistema as administra, oferecendo acesso a certos direitos de forma calculada e limitada.
No entanto, isso gera um novo problema: ao organizar a sociedade com base em identidades rígidas, acaba-se criando hierarquias de direitos. Isso alimenta a percepção de que alguns grupos têm mais acesso que outros, o que, por sua vez, estimula o ressentimento de quem se sente excluído ou deixado para trás.
Neoliberalismo, trabalho e competitividade
Barros também vincula o identitarismo ao colapso do modelo de trabalho do século XX. No lugar da estabilidade e da solidariedade entre trabalhadores, vieram a flexibilização, a competição e a lógica da meritocracia — pilares do neoliberalismo.
Esse novo modelo revelou de forma escancarada as desigualdades estruturais que sempre existiram, colocando minorias em desvantagem no mercado. Para tentar mitigar essas diferenças, o sistema passou a criar políticas de inclusão que, embora necessárias, reforçaram categorias identitárias fixas. Esses grupos, além de consumidores, tornaram-se também sujeitos politicamente previsíveis e gerenciáveis.
A internet e o culto à identidade
Outro ponto central do livro é o papel da internet na radicalização das identidades. Se antes a identidade de classe diluía muitas outras distinções sociais, hoje vemos uma busca quase desesperada por pertencimento. A internet criou espaços onde todos querem ser algo — ter um nome, uma bandeira, um diagnóstico que os defina.
Segundo Barros, até mesmo quem se opõe ao identitarismo acaba adotando posições identitárias. “Hoje em dia até ser hétero e patriarca virou identidade”, ironiza. O resultado disso é um cenário de polarização e narcisismo, onde afirmar uma identidade significa automaticamente negar a do outro. Isso bloqueia o diálogo e intensifica o conflito.
Extrema direita e identitarismo: duas faces da mesma moeda
Barros não poupa críticas à extrema direita, que acusa o identitarismo de fraturar a sociedade, mas promove ela própria uma identidade excludente. Líderes como Trump e Orbán apelam para uma universalidade restrita, que só contempla o grupo dominante. Ao pedir “limpeza étnica” ou erguer fronteiras, mostram que sua política também se baseia na exclusão do outro.
A presença de bandeiras da Confederação nos EUA e o apoio de figuras como Elon Musk a essas ideias são, para o psicanalista, demonstrações claras da dimensão identitária da extrema direita — o que ele chama de lógica protofascista.
A mercantilização da política e o desafio da esquerda
Para Barros, até os partidos políticos progressistas acabaram se adaptando a essa lógica. Candidatos que representam minorias muitas vezes são tratados como “produtos” a serem vendidos em um mercado político. Apesar disso, ele acredita que ainda há espaço para resistir: “Não é porque os partidos estão dentro do sistema que precisam se submeter completamente a ele.”
Ele também critica a passividade da esquerda, que, segundo ele, se acomodou na institucionalidade e perdeu a capacidade de questionar o sistema de forma mais radical. “Talvez seja hora de voltar a desconfiar da institucionalidade como ela está posta”, sugere.
Existe saída para o identitarismo?
A curto prazo, Barros admite que o cenário é difícil. Para ele, a resposta que o mundo vem dando ao fracasso do neoliberalismo tem sido o autoritarismo e a guerra. Ainda assim, ele aposta na história como um processo em constante transformação.
“Talvez a saída seja resgatar a política como espaço de conflito verdadeiro — não o conflito odioso imposto pela extrema direita, mas o confronto de ideias e de visões de mundo”, defende.
Ele se mostra esperançoso com pequenos sinais de mudança, como o debate sobre o fim da jornada 6x1. Para ele, iniciativas assim desmistificam a ideia de que a vida precisa ser definida unicamente pelo trabalho, e abrem caminho para repensar a política a partir da experiência das pessoas comuns.
“Essas pessoas são as que realmente importam”, conclui, com uma risada ao lembrar que muitos dizem que seu livro é difícil e que “ninguém vai ler”. Mas sua mensagem, no fundo, é clara: entender o identitarismo é fundamental para enfrentar os desafios da política contemporânea.