Deputados do PL destinam R$ 2,6 milhões via Pix para série documental conservadora

Deputados federais do PL — Alexandre Ramagem (RJ), Carla Zambelli (SP), Bia Kicis (DF) e Marcos Pollon (MS) — destinaram R$ 2,6 milhões em emendas parlamentares via Pix para a produção de uma série documental sobre a colonização do Brasil. O valor foi encaminhado em junho de 2024 ao governo do estado de São Paulo, mas o real destinatário é uma associação privada ligada a igrejas evangélicas, que se declara conservadora.
Zambelli e Pollon enviaram R$ 1 milhão cada, enquanto Ramagem destinou R$ 500 mil e Bia Kicis, R$ 150 mil. Os recursos foram repassados via transferência especial, modelo conhecido como emenda Pix, que permite a destinação direta de verbas da União a estados e municípios sem exigência de convênio ou análise técnica prévia por parte do governo federal.
A associação responsável pela série é a Academia Nacional de Cultura (ANC), criada em 2020. Sem histórico na área de audiovisual, a entidade afirma ter uma atuação voltada para valores cristãos e familiares. Em entrevista ao UOL, a presidente da instituição, Karina da Gama, afirmou:
"A gente vai fazer conteúdos mais voltados para a família, para a educação como um todo. A maioria dos artistas que se encontram conosco tem visão conservadora".
Produção da série e ausência de histórico
A série, batizada de “Heróis Nacionais – Filhos do Brasil que não se rendem”, terá três episódios: o primeiro, “Portugal: Luz para o Brasil”; o segundo, sobre o padre José de Anchieta, chamado de “Apóstolo do Brasil”; e o terceiro, “Dom Pedro I: o Libertador”. A proposta é exaltar figuras históricas sob um olhar alinhado a valores conservadores.
Carla Zambelli, hoje foragida, defendeu a produção em nota:
“A série busca inspirar o público a valorizar a identidade nacional. O documentário se propõe a destacar personagens que, ao longo dos séculos, dedicaram suas vidas à construção da nação — figuras que colocaram o interesse coletivo acima dos próprios e que contribuíram para afirmar os valores e virtudes do povo brasileiro.”
Apesar da transferência formal para o governo de São Paulo, o destino final das verbas é a ANC, que funciona, segundo seu CNPJ, em uma sala comercial da Avenida Paulista. No local, no entanto, funciona apenas um coworking de endereços fiscais, onde a associação nunca foi registrada. Questionada, a ANC informou que sua sede operacional está localizada em outro endereço, na Rua Haddock Lobo.
Ligações com igrejas e políticos bolsonaristas
Karina da Gama integra o GT Cristão, grupo político-religioso que reúne lideranças evangélicas com o objetivo de levar "pautas cristãs" às assembleias legislativas. A associação já esteve envolvida em campanhas políticas, incluindo o apoio à reeleição de Ricardo Nunes (MDB-SP) e a eventos ligados ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A ANC também organiza o evento The Connect Faith, promovido como “a maior feira de fé, tecnologia e inovação cristã”, programado para este mês em São Paulo.
“Muitos de nós que formamos a base da Academia Nacional de Cultura somos pessoas do segmento cristão. Qualquer projeto que seja de cunho e de interesse social nos interessa. Então, não é exatamente uma questão ideológica. Nós não somos um projeto político, somos um projeto artístico”, afirmou Karina.
Direção ligada ao bolsonarismo
A série será dirigida por Doriel Francisco da Silva, dono da Dori Filmes e responsável pelo documentário pró-Bolsonaro “A Colisão dos Destinos”, promovido por Mário Frias e Eduardo Bolsonaro. Doriel também é roteirista de outro projeto financiado com emendas de parlamentares do PL: “Genocidas”, produzido por ex-assessores de Frias com R$ 860 mil em verbas públicas.
A produção prevê gravações em dez cidades portuguesas, incluindo Lisboa e Porto, além da compra de 22 passagens aéreas. Os documentos enviados ao governo paulista falam em divulgação da série por influenciadores digitais conservadores e parcerias com TV aberta e plataformas de streaming, mas não detalham nomes nem contratos.
Falta de transparência e críticas
Embora legal, o uso das emendas Pix é criticado por sua baixa transparência. A plataforma oficial TransfereGov mostra apenas que os recursos foram enviados ao governo paulista, sem mencionar a ANC como beneficiária final nem os detalhes do uso das verbas.
O ministro do STF Flávio Dino já determinou que estados e municípios melhorem a transparência e rastreabilidade dessas transferências, com obrigação de prestação de contas ao governo federal.
“As emendas Pix têm rapidez e muito menos burocracia. Infelizmente, menos transparência e controle também. Não são plenamente rastreáveis e podem ser aplicadas em programas não prioritários e de baixo ou nenhum impacto social”, afirma Bruno Bondarovsky, pesquisador em gestão pública e criador da plataforma Central das Emendas.
A contradição, segundo críticos, está no discurso dos próprios deputados bolsonaristas, que frequentemente atacam a Lei Rouanet e outras políticas culturais por suposta falta de critérios e favorecimento à esquerda, enquanto destinam recursos públicos a projetos ligados a seus aliados ideológicos e sem histórico técnico comprovado.