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    Classe média brasileira troca empregada por cuidadora

    O GLOBO
    Classe média brasileira troca empregada por cuidadora Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

    O perfil do trabalho doméstico no Brasil está mudando. Enquanto o número de empregados em serviços gerais — como faxina e passadoria — vem diminuindo, cresce a presença de cuidadores pessoais nos lares, especialmente de idosos e pessoas com deficiência. Em dez anos, essa categoria quase dobrou, refletindo o envelhecimento da população e a reorganização das famílias brasileiras.

    Dados do Dieese, com base na Pnad Contínua do IBGE, mostram que, entre os 5,9 milhões de trabalhadores domésticos em 2024, 21% (ou 1,24 milhão) são cuidadores. Em 2014, essa proporção era de 13,9%. A categoria de cuidadores pessoais — principalmente de idosos — passou de 5,8% para 11,1%. No mesmo período, a fatia de profissionais de serviços gerais caiu de 82,7% para 73,6%.

    A mudança está diretamente ligada ao envelhecimento da população. Projeções do IBGE indicam que, até 2070, mais de 40% dos brasileiros terão mais de 65 anos. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) alerta que o número de pessoas com necessidade de cuidados prolongados mais que triplicará nas Américas nas próximas três décadas.

    Ao mesmo tempo, as famílias estão menores e com menos membros disponíveis para cuidar dos mais velhos. As mulheres, que ainda são as principais responsáveis por esse cuidado, enfrentam sobrecarga: dedicam quase o dobro do tempo que os homens a essas tarefas sem remuneração, segundo o IBGE. Com mais mulheres no mercado de trabalho e sem políticas públicas adequadas, a demanda por cuidadoras profissionais cresceu nas famílias com poder aquisitivo.

    A Política Nacional de Cuidados, publicada pelo governo federal em 2024, ainda carece de regulamentação e ações concretas. Enquanto isso, crescem as contratações de cuidadoras no setor privado, principalmente pelas classes média e alta. A ausência de estruturas públicas, como centros-dia, reforça essa tendência.

    A profissionalização do cuidado

    Lucicléia de Oliveira, 42, natural do interior da Bahia, trabalhou por 17 anos como diarista no Rio de Janeiro. sete anos, passou a cuidar de idosos após perceber a demanda:

    Enquanto limpava casas, vi muitos idosos sozinhos porque os filhos estavam no trabalho. Como sempre gostei de lidar com pessoas mais velhas, comecei a atuar como cuidadora.

    Ela trabalha sem parar, com escalas de até 48 horas, recebendo em média R$ 250 por dia. Para manter a renda, alterna entre diferentes casas e ainda realiza serviços de faxina. Mesmo informal, contribui como MEI para garantir a aposentadoria. Mas a maioria dos cuidadores (67,4%) não paga INSS.

    Thamíris Silva, 33, também viu nessa área uma oportunidade. Mãe solo de dois filhos e técnica em enfermagem, ela concilia o trabalho de cuidadora com o de micropigmentadora:

    Gosto muito de trabalhar com idosos, mas é uma profissão desvalorizada. Muitas cooperativas não repassam nem metade do que o paciente paga para a gente.

    Apesar de terem, em média, maior escolaridade que empregadas de serviços gerais, as cuidadoras enfrentam condições igualmente precarizadas. O Dieese aponta que 79% trabalham sem carteira assinada. A média salarial em 2024 foi de R$ 1.482, para jornadas semanais de cerca de 41,6 horas entre mensalistas. as babás, com jornada média de 37,4 horas, recebem ainda menos: R$ 1.069, com 77,7% de informalidade.

    Crise do cuidado e falta de políticas públicas

    A chamada "crise do cuidado" reflete uma contradição: aumento da necessidade de assistência com menos pessoas disponíveis para oferecê-la. Ana Amélia Camarano, economista do Ipea, destaca que casamentos mais curtos, menos filhos e a migração desses filhos dificultam o cuidado familiar:

    Isso criou um mercado de trabalho para cuidadoras, que gera renda principalmente para mulheres. Muitas domésticas acabam assumindo essa função à medida que os patrões envelhecem.

    Cláudia Peixoto, empresária, contratou três cuidadoras após sua mãe sofrer um AVC aos 84 anos. Ela coordena as compras, consultas médicas e visitas, mas delega o cuidado físico:

    Trabalho o dia inteiro e não posso parar. Faço minha parte, mas preciso de ajuda especializada.

    Para a técnica em enfermagem Marcia Nascimento, 42, que cuida de uma idosa cinco vezes por semana, a realidade é trabalhar sem registro formal. Mãe de dois filhos, ela teve de deixá-los aos cuidados da irmã para poder trabalhar:

    Sempre paguei minha irmã e ajudei nas despesas. As pessoas passaram a aceitar mais a ideia de contratar cuidadores, o que antes era visto com resistência.

    Precarização e invisibilidade

    A pesquisadora Juliana Teixeira, autora do livro Trabalho doméstico, lembra que o serviço de cuidado, apesar de mais profissionalizado, ainda compartilha da precarização histórica do trabalho doméstico no Brasil, marcado pela herança da escravidão:

    Ainda é difícil reconhecer o cuidado como trabalho. É visto como vocação ou destino natural das mulheres negras empobrecidas. A relação afetiva criada entre cuidadoras e famílias muitas vezes mascara a relação trabalhista, como se a profissional fosse "da família".

    A maioria das cuidadoras — 94% mulheres, 64% negras — assume também a responsabilidade pela renda da casa, mesmo com baixa remuneração e sem direitos garantidos. Muitas não têm tempo nem para cuidar dos próprios parentes.
























    A tendência é clara: diminuem as empregadas de serviços gerais e aumentam as cuidadoras, com o agravante de que o cuidado, fundamental para a dignidade humana, segue sendo feito em condições precárias, invisibilizado e subvalorizado.




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