Governo infla dados sobre internet em escolas e ignora falhas em conectividade

Estadão
Governo infla dados sobre internet em escolas e ignora falhas em conectividade Reprodução

Um estoque de computadores preenche o depósito do Centro Educacional Irmã Maria Regina Velanes Regis, localizado na zona rural de Brasília. Devido a uma internet precária que não atende nem professores nem alunos, a escola decidiu desativar o laboratório de informática para utilizar o espaço na educação integral. Sem uma boa conexão, as atividades escolares que exigem o uso da internet são realizadas de forma improvisada ou adiadas.

“A gente tem de colocar internet no celular para fazer a pesquisa (que o professor pediu), ou pegar internet com a ‘tia’ da lanchonete”, conta Samy da Silva, de 18 anos, aluna do ensino médio. “Às vezes tem de subir na cadeira para pegar sinal.”

No entanto, de acordo com as informações do governo, a instituição de ensino não possui queixas. O Ministério da Educação (MEC) classifica a escola como uma das que dispõem de um serviço de internet satisfatório. A realidade, entretanto, é bastante diferente. Localizada a cerca de 40 quilômetros do Palácio do Planalto, a Escola Irmã Maria Regina é um exemplo de como o ministério apresenta dados exagerados sobre a qualidade da conectividade nas escolas públicas.

Uma pesquisa realizada pelo Estadão aponta que 15.404 escolas em todo o Brasil contam com uma internet de velocidade insuficiente para atender às necessidades da comunidade escolar, mas que ainda é considerada “adequada” pelo governo. O Ministério da Educação (MEC), ao ser contatado, informou que utiliza diversas fontes de dados para avaliar a velocidade de conexão e anunciou a implementação de um novo método de avaliação da conectividade nas escolas públicas, em resposta aos desafios enfrentados por estas instituições em diferentes regiões do País (veja mais abaixo).

Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a internet na rede pública é promovida como uma prioridade na área da educação. Lula se comprometeu a garantir que, até o final de seu mandato em 2026, todas as escolas estejam conectadas, com um investimento previsto de R$ 8,8 bilhões para essa finalidade.

A pesquisa fundamenta-se em informações oficiais fornecidas pelo MEC, após solicitação do Estadão, via Lei de Acesso à Informação. O ministério divulga a velocidade mínima que deveria ser instalada em cada escola, a velocidade de conexão aferida pelo dispositivo oficial e as velocidades informadas por outras fontes, como as que são declaradas por secretarias estaduais e municipais.

Em várias unidades, o MEC desconsidera a medição do dispositivo oficial quando a velocidade de conexão não atinge os padrões estabelecidos por uma resolução governamental. Nesses casos, o ministério prefere aceitar os dados de fontes alternativas que não refletem o valor real do serviço disponível na escola, o que resulta em uma superestimação do número de instituições com conexão classificada como “adequada”.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Estadão, das 137,9 mil escolas públicas do Brasil, apenas 49,2% possuem acesso à internet com velocidade considerada adequada. Esse número se refere às instituições de ensino onde o serviço de internet atende aos parâmetros mínimos estabelecidos em relação ao número de alunos matriculados. Em contrapartida, 36,1% das escolas apresentam uma conexão insatisfatória, inadequada para uso tanto de professores quanto de alunos.

Entretanto, esses dados divergem das informações fornecidas pelo MEC ao Estadão, que classifica as escolas como conectadas de maneira adequada ou inadequada. Segundo o ministério, 95,1% das escolas públicas do país possuem algum tipo de conexão. Ao utilizar o critério do MEC, a quantidade de instituições com internet de boa qualidade se torna a maioria, alcançando 60%, incluindo uma unidade localizada na periferia de Brasília. Por outro lado, as que têm uma rede de conexão ruim totalizariam 25%.

Para justificar essa afirmação de que a maioria das escolas dispõe de conexão adequada, o ministério recorre a cinco fontes diferentes de informação, algumas das quais dependem da autodeclaração de diretores de escolas e de secretarias estaduais e municipais. Dessa maneira, o MEC ignora a resolução do Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Cenec), que estabelece uma única forma de avaliação da qualidade da rede, utilizando o Medidor Educação Conectada.

 Segundo explica o próprio MEC, é um software que serve para “conferir diversos indicadores da qualidade da conexão da escola, como a velocidade da internet para download e upload, a latência da rede e a qualidade da internet na escola”.

Nas escolas onde há divergências nas classificações, a medida oficial aponta que a velocidade da internet está abaixo do que é recomendado. No entanto, outra fonte utilizada pelo ministério afirma que existe um serviço com velocidade maior disponível, ainda que não haja um meio que garanta a veracidade dessa informação. Por exemplo, no Centro Educacional Maria Regina, no DF, a velocidade mínima de conexão deveria ser de 431 megabits por segundo (Mbps). O medidor oficial revela que lá a velocidade chega a apenas 61,07 Mbps. Contudo, o MEC inclui na lista escolas que possuem internet adequada para uso pedagógico como se a velocidade disponível fosse de 800 Mbps.

A proposta da gestão Lula não se restringia a implementar o serviço apenas para o uso do diretor da escola em assuntos administrativos, mas sim assegurar que a rede fosse utilizada para ensinar e aprender dentro da sala de aula.

“Não é só ter a internetzinha lá, com baixa velocidade. É que tenha equipamento. Que pelo menos tenha um laboratório de informática, tablet, wi-fi na escola”, disse o ministro da Educação, Camilo Santana, em solenidade de 2023.

‘Há nítida desarticulação das políticas’, diz especialista.

“A gente já tinha observado essa não correspondência”, diz Paloma Rocillo, diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. “Em 2025, enquanto existem alunos usando inteligência artificial de forma supersofisticada para aprimorar o ensino-aprendizagem e professores utilizando a internet para aperfeiçoar as aulas, quando a gente tem a exclusão digital, ela é uma exclusão social ainda maior.”

“Há nítida desarticulação das políticas governamentais em relação ao uso educacional da internet. Essa resposta ministerial de que existe um parâmetro que não é lá muito bem seguido é reflexo dessa desarticulação”, diz ela, membro do Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Em setembro de 2023, o petista se reuniu com Camilo Santana e Juscelino Filho (que na época era ministro das Comunicações) para anunciar a unificação das ações federais, garantindo que todas as escolas tenham acesso à internet. No início do mês, um representante do Ministério das Comunicações declarou em um evento que o País precisa conectar 200 escolas diariamente até o final de 2026 para atingir a meta estabelecida há dois anos.

Como detectar os dados inflacionados do MEC

Por meio da Lei de Acesso à Informação, o Estadão requisitou ao MEC a lista de todas as escolas do Brasil, incluindo a velocidade de conexão, a metodologia utilizada para medir essa velocidade e a classificação relacionada à qualidade da internet. O ministério forneceu essas informações. Com base nelas, foi possível identificar que várias escolas que o ministério classifica como tendo uma velocidade de conexão "adequada", na realidade, estão abaixo do patamar mínimo estipulado pelo próprio ministério.

De acordo com a versão oficial do MEC, os dados mais atuais apontam que existem 83.217 unidades com internet na velocidade considerada adequada; 34.383 com internet em velocidade inadequada; 13.640 sem informações disponíveis para avaliação da qualidade da rede; e 6.674 escolas ainda sem acesso à conexão.



No grupo de escolas consideradas como local com boa conexão, existem, entretanto, 15.404 instituições, conforme identificado pelo Estadão, onde o medidor oficial indica que a velocidade de tráfego de dados é baixa e não cumpre o padrão mínimo estabelecido pelo próprio MEC. Esse padrão varia de acordo com o número de alunos matriculados na escola e o nível de ensino. Quanto maior for a instituição, mais robusta deve ser a conexão para suportar o volume de acessos.


Ao considerar os dados do medidor oficial de velocidade da internet, o total de escolas com rede adequada diminui de 83.217 para 67.813. Por outro lado, o número de instituições com conexão inadequada aumenta de 34.383 para 49.787.


A análise das informações do MEC revela que no Estado de São Paulo há 1.885 escolas com serviço de internet considerado adequado pelo ministério, porém o medidor oficial indica que a velocidade de conexão não alcança o padrão mínimo definido pelo governo. No Paraná, são 1.297, e em Minas Gerais, 1.288 escolas. Há indícios de dados inflacionados em praticamente todos os Estados.


O MEC afirma que utiliza diversas fontes de informação para avaliar a velocidade da internet nas escolas, conforme ressalta a resolução da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec). Em uma nota ao Estadão, o MEC esclarece que o programa é um  “esforço do governo federal” em parceria com os sistemas de ensino estaduais e municipais, com o setor privado e o terceiro setor com objetivo de universalizar “conectividade significativa com fins pedagógicos para todas as escolas públicas do País até 2026″.

A pasta afirma que algumas escolas já dispunham de internet, porém as políticas implementadas até aquele momento não garantiam a conectividade necessária para fins pedagógicos. Segundo o MEC, o Medidor Escolas Conectadas é “uma das principais fontes de dados de velocidade usada para as escolas já conectadas”. Mas há questões técnicas que podem limitar a medição da conexão adequada por meio desse medidor.

“A maioria das escolas faz a instalação do medidor no computador. A coleta de dados depende, portanto, dessa instalação proativa por parte dos gestores escolares. Um desafio constante são as taxas de desinstalação do software ao longo do ano, em função de diversos fatores (trocas de equipamentos, entre outras)”, diz a nota do ministério.

Por conta desse problema, o MEC sustenta que é preciso complementar as fontes de medição. A resolução oficial que trata do tema, no entanto, só apresenta um medidor como fonte para aferir dados. “Torna-se essencial a complementariedade de múltiplas fontes de informação no âmbito da Enec, de modo a permitir acompanhamento mais abrangente e fiel da complexa realidade da conectividade escolar no Brasil”, diz o ministério.

Entre as fontes de informação utilizadas estão a velocidade declarada pelas secretarias, a velocidade reportada pelas escolas ao MEC, a velocidade informada pelo Ministério das Comunicações e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no âmbito do Programa Aprender Conectado, além da velocidade registrada no Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE). 

O MEC reconhece, em sua nota, que a garantia de conexão à internet nas escolas enfrenta desafios estruturais, como a falta de energia elétrica e falhas na infraestrutura de telecomunicação. Para lidar com isso, o governo implementou em dezembro um novo método para avaliar a conectividade nas escolas, denominado Indicador Escolas Conectadas. Desde sua criação, as escolas têm sido classificadas com notas de 1 a 5, sendo que apenas aquelas que alcançam notas 4 e 5 são consideradas adequadas. Contudo, o resultado desta nova avaliação ainda não foi divulgado pelo MEC.

Em relação à Escola Irmã Maria Regina, o MEC informou que os dados foram fornecidos pelo gestor da instituição, enquanto a Secretaria da Educação do Distrito Federal não se pronunciou. No começo de abril, uma representante do ministério mencionou o indicador durante uma mesa de discussão em um seminário em Brasília. Ela reconheceu que, segundo esse novo critério, 52,8% das escolas no País atendem a três padrões: energia elétrica apropriada, velocidade de conexão adequada e distribuição de sinal wi-fi satisfatória. No entanto, o indicador acaba utilizando dados de velocidade de conexão superavaliados, uma vez que o MEC emprega “fontes múltiplas” para aferição.

A especialista Paloma Rocillo observa que o avanço tecnológico possibilita superar essas dificuldades.

“Barreiras geográficas e territoriais não são justificativas plausíveis para permitir desigualdade do acesso à internet tão profunda quanto existe”, destaca.


Ela defende ainda ter padrão robusto para medir a qualidade da internet nas escolas e garantir que a métrica seja cumprida. Para isso, segundo ela, é preciso compromisso político. A pesquisadora cita, por exemplo, o programa Banda Larga nas Escolas, implementado em 2008, que não atingiu a qualidade necessária de internet na rede educacional.

“É preliminar e absolutamente necessário existir parâmetro definido, estabelecido e, obviamente, que não ficará obsoleto ao longo do tempo, porque a tecnologia muda muito rápido”, afirma.




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